Parte IV

Há alguns anos desenhei uma revista do “Dr. Estranho” para a Marvel. Utilizei vários recursos de linguagem típicos dos quadrinhos, muitos criados em The Spirit, usados em histórias do próprio “Dr. Estranho” e em HQs do Batman (o tal personagem realistão). Tive de refazer as páginas porque os elementos gráficos que usei estavam “ultrapassados” e infantilizavam a história… Palavras do próprio editor.

Interessante notar que, quando Will Eisner fala sobre esses elementos gráficos, todos os estudiosos, leitores e profissionais de quadrinhos o chamam de gênio e nunca categorizaram sua obra como infantil, mas, usar isso hoje em dia, nem pensar.

Recentemente, o escritor realistão de quadrinhos, Alan Moore, em uma de suas críticas às adaptações de quadrinhos para o cinema, disse o seguinte: “Veja essa ideia de fazer um filme de ‘Spirit’. Eu diria que é bastante óbvio que não é a história de um cara de máscara azul que enfrenta o crime quando sai do seu túmulo de mentira.

The Spirit é sobre os quadros na página e o jeito como seu olho dança de um para o outro. São as formas e layouts e designers inovadores que Will Eisner trouxe para a mídia. Não dá para traduzir isso em filme. Por mais que Eisner amasse o cinema e tentasse tirar várias técnicas dali para os quadrinhos, há coisas numa página de Will Eisner que você não consegue traduzir para a linguagem do cinema.” – texto do site OMELETE matéria publicada em 2009.

Ele não está falando de adaptar apenas o personagem em si, mas também a linguagem.

Agora, em relação ao uso da tal linguagem cinematográfica nos quadrinhos, tenho procurado sacar o que se entende por isso… Frank Miller, por exemplo, é sempre citado quando o assunto é o uso de recursos cinematográficos nas HQs. Um dos mais usados por ele é a descompressão. Vou tentar explicar de maneira muito simplista o que é tido como compressão e descompressão em histórias em quadrinhos.

Para entender como isso funcionava (quase ninguém usa compressão hoje em dia) é legal saber que isso existia pela própria maneira como os quadrinhos foram desenvolvidos nos EUA, e como isso se deu paralelamente às necessidades do próprio meio, em termos comerciais, formato e público.

Não estou considerando o desenvolvimento da linguagem dos quadrinhos em termos de história… porque se fizer isso tenho que considerar a linguagem das pinturas na caverna do homem primitivo… Mas, vamos começar com as primeiras caricaturas e charges dos jornais.

A charge é uma compressão de informação: em uma só imagem você pode passar várias ideias e conceitos. A charge deu origem às tiras, onde a descompressão permitia ao artista criar uma progressão de acontecimentos: de quadro para quadro havia uma passagem de tempo… O que chamamos de sequencialidade. Outro desenvolvimento da descompressão é o surgimento das meias páginas e das páginas inteiras nas chamadas páginas dominicais dos jornais, dando mais espaço ao artista para desenvolver ritmo e sequencialidade.

Esta progressão de desenvolvimento da linguagem dos quadrinhos veio por necessidade comercial… o público queria mais espaço para as tiras, para as charges e para os quadrinhos, e esta nova mídia dava muito dinheiro aos editores, logo ela tinha mais espaço para ser explorada e, com isso, desenvolvida. Nas imagens abaixo, não usei critério cronológico… algumas imagens vem são de períodos anteriores os posteriores à ondem cronológica das imagens… Usei as imagens apenas como conceito do desenvolvimento do veículo.

Paralelamente a isso, foi se criando o objeto físico desta mídia, quando os quadrinhos saíram dos jornais e criaram seu próprio espaço e formato, o comic book (estou dizendo isso porque peguei o mercado norte-americano como exemplo, aqui)…

Agora, os artistas teriam a possibilidade de outro tipo de controle sequencial para desenvolver histórias a princípio curtas… 4, 8, 12 páginas, até chegarmos a formatos mais extensos com histórias de 22, 24 páginas. A ideia de que você poderia produzir materiais com roteiros mais complexos, extensos, e alguns fatores de linguagem, como a “virada de página” (a história tendo sequência nas páginas seguintes), trouxe a oportunidade de os artistas criarem uma série de outras ferramentas de controle de ritmo, controle de planos, cortes de sequência e tudo mais.

Este tipo de descompressão foi um presente dado aos artistas pela própria necessidade comercial do meio, mas existem outros tipos de descompressão que ocorreram por influências de outras linguagens… De qualquer maneira, é interessante ver como, muitas vezes, uma forma de linguagem pode se desenvolver, em termos artísticos, através de possibilidades comerciais. A linguagem e o trabalho de sequencialidade típico dos quadrinhos também se desenvolveram na Europa com a criação de formatos como o álbum, as narrativas longas… ou mesmo o formato Mangá, onde você tem uma sequencia pequena de páginas em revistas mix e depois você o controle da sequencia quando são encadernadas… as minisséries e maxi-séries fechadas nos EUA, os arcos de história dentro das revistas de linha (revistas mensais).

A compressão está relacionada ao estilo de composição de cena e de narrativa, onde, por necessidade (o espaço limitado de número de páginas e a necessidade de cada história ser fechada, isto é, ter começo e fim em 22 páginas, por exemplo), o artista colocava muita informação de história e elementos gráficos dentro de cada quadro. Esta compressão foi uma das mais interessantes ferramentas de linguagem das HQs e também responsável pela criação da maioria destes recursos de linguagem. Como dizem, a necessidade é a mãe da invenção.


Fim da parte IV

Leia também: Parte I, Parte II, Parte III, Parte V, Parte VI (final)