Parte VI (Final)

A história em quadrinhos Supremos (Marvel Comics), por exemplo, é um dos materiais tidos como realistas, cinematográficos, nos quadrinhos. A intenção deste material parece clara: reproduzir em quadrinhos uma adaptação para o cinema de um gibi dos Vingadores nos padrões atuais de realismo e verossimilhança exigidos pelo público.

A maneira como a história é estruturada é típica de um roteiro de cinema: o crescendo dela, a maneira como os personagens são apresentados, a estética do texto (evitando narração em recordatórios e centrada apenas nas imagens e nas falas dos personagens como esqueleto para se contar a história), como eles são “realisticamente” reestruturados para o público mais geral (alvo das superproduções de Hollywood), os mesmos planos, enquadramentos e composições vistos nas produções com grandes efeitos especiais e principalmente a arte realista de Bryan Hitch. 

Todos os leitores de Supremos gostariam de ver esse material na telona… inclusive eu. Ele é claramente um filme em quadrinhos e foi um dos maiores sucessos de venda e crítica para o público de quadrinhos, justamente por esta sua característica. Acho que isso demonstra a influência dos filmes inspirados em histórias em quadrinhos em sua mídia natal.

Gosto dos Supremos como história em quadrinhos (para mim, este é um dos quadrinhos de super-heróis mais bacanas dos últimos tempos), mas acho que ele é um representante deste distanciamento que o quadrinho estabeleceu do próprio quadrinho como linguagem. Acho válido existir materiais como este… acho importante… mas, quando percebo que ele se torna a regra, uma LEI, de como fazer uma HQ hoje em dia – por conta desta busca pelo realismo -, sinto que isso se torna uma espécie de ditadura, e isso é complicado.

Em termos de linguagem cinematográfica, não acho Supremos tão cinematográfico assim. É claro que vou ser crucificado pelos fãs da obra, e de quadrinhos, e de cinema e tudo mais por dar essa minha opinião… Em termos de composição de cena, por exemplo, vejo muito mais uma estética inspirada ainda na época da compressão do que da descompressão (que seria um dos elementos estéticos de narrativa nos quadrinhos atuais, identificados como cinematográficos).

Para mim, o estilo de composição, do uso e controle de planos, de sequencialidade, tem nítida inspiração em quadrinhos da década de 1980, como alguns materiais feitos por John ByrneWalt Simonson e Howard Chaykin – nestes dois últimos casos me refiro à composição de cena e não em termos de design de página. Chaykin e Simonson trabalhavam muito mais as questões de design de página, com utilizações maiores de formato e tamanho de quadro e distancias de calhas como significados gráficos, do que Hitch.

Para mim, não é na narrativa que está o tal realismo ou linguagem cinematográfica de Supremos, estes aspectos vêm em duas métricas diferentes:

Primeiro: o estilo realista da arte de Hitch.

Segundo: o não uso de ferramentas específicas de linguagem de quadrinhos. O não uso de calhas, de estilos de requadro… não há uso de elementos gráficos de expressão (como linhas cinéticas e outros tipos)… Há um bom uso de onomatopéias, mas este é um dos únicos recursos gráficos mais “caricatos” da linguagem.

A narrativa de Supremos é direta, seca, objetiva como nos quadrinhos comprimidos. A maneira como cada história é construída se dá como nas antigas HQs de super-heróis: histórias fechadas, centradas, cada uma delas em um tema (embora eu saiba que ela é trabalhada em formato de maxi-série, ou arcos de história, com querem alguns).

Este é um material muito interessante, porque consegue reunir linguagens e eliminar algumas, que aparentemente “prejudicariam” a obra como obra de HQ, mas que criam uma estética mista entre cinema e quadrinhos curiosa… As mudanças de cena, os cortes, as composições comprimidas, a narrativa comprimida, o uso de troca de página, lembram quadrinhos e não cinema… Ao mesmo tempo em que a falta de elementos gráficos específicos de quadrinhos e o desenho realista lembram algo adaptado da linguagem, algo mais próximo do cinema.

Supremos é bom porque consegue equacionar as duas coisas muito bem. Ao mesmo tempo em que os autores tentam fazer cinema espetáculo “pseudo adulto”, não esquecem que aquela é uma obra de quadrinhos. Eles adéquam os sistemas de linguagem de modo que a obra fique interessante.

De novo, o problema é que hoje todos querem fazer quadrinhos assim, e acho que nem todos os quadrinhos precisam ser assim… Alguns ainda podem usar sistemas narrativos desta forma de arte, e o leitor de quadrinhos pode aceitar as funções gráficas desta forma de expressão. Uma história séria, realista, profunda, pode usar um traço mais estilizado. Uma história em quadrinhos pode parecer apenas uma história em quadrinhos e não um filme. Um desenho pode parecer apenas um desenho, e não uma reprodução acadêmica da realidade. A realidade pode ser representada. Prova disso são os trabalhos de Will Eisner, considerado um gênio dos quadrinhos por fazer exatamente isso. Darwin Cooke, por exemplo, é um quadrinista que tenta fazer isso.

Da mesma maneira, podem-se aceitar certas experiências nas adaptações de quadrinhos para cinema. Por que não filmes menos “realistas”, com propostas estéticas diferentes? Por que filmes como os Batman, de Tim Burton, são vistos como fantasiosos demais? Por que não aceitar essa fantasia? Por que fazer um Superman “realista”? Por que não um Superman ao estilo Sky Captain?

É claro que a resposta vem rápido… Sky Captain foi um fracasso nas bilheterias. É verdade. Poucos aceitaram a brincadeira… A maioria só consegue se conectar a história se ela não fantasia demais. Se você acha o filme ruim, ok, mas não pode acusá-lo de não ter tentado algo esteticamente diferente, mesmo sendo um filme de referência… Filmes como Speed Racer, por exemplo, que todos criticam negativamente por ser fantasioso e colorido… se deixarem a memória afetiva de lado, verão que a animação original não era tão “realista” ou “séria” como se lembram.

Seria legal aprender a ler outras possibilidades estéticas visuais e narrativas. E quadrinhos é uma delas. Quadrinhos não é desenho bonito, não é desenho realista, não é desenho caricato. Quadrinhos não é história adulta, infantil, infanto-juvenil… Quadrinhos é um conjunto de linguagens gráficas. É uma linguagem, é narrativa. Aprenda a ler quadrinhos, não tenha preconceitos contra uma linguagem antes de entender sua intenção.

Todas as obras, por mais fantasiosas que sejam, têm na realidade sua base estrutural. O que você precisa sacar é que existem maneiras mais sutis e subjetivas de mostrar esta realidade que, muitas vezes, podem mostrá-la de modos até mais profundos. Acho que assim você pode abrir mais sua cabeça e aceitar outras maneiras de se expressar.


Fim da parte VI

Leia também: Parte I, Parte II, Parte III, Parte IV, Parte V