Uma coisa que logo entendi sobre o Dia da Consciência Negra, o famoso 20 de novembro, dia da morte de Zumbi, é que a luta começa de forma interna. Com o saber-se negro. Parece pacífico, mas não é.
Não há nada de pacífico em saber-se negro. Há uma tarefa matutina antes de sair na rua. Antes de enfrentar as desconfianças em ambientes diversos (ou as situações aviltantes a que as mulheres negras são expostas). Antes do medo de andar por certas ruas em certas horas. Como saberei quem me aguarda na esquina? Talvez o tipo de ser que escolheu usar uma arma para se impor no mundo. Eles desconfiam de mim e eu deles. A balança desonesta que pessoas preconceituosas usam em falsa simetria.
Antes de sair pela porta para mais um dia, a tarefa crucial: devemos nos olhar no espelho e ver beleza, ver talento, ver coragem, ver tenacidade. Ver tudo o que dizem que não temos. Ver tudo o que parece inato apenas nos outros.
Meu ponto é: quando um de nós desponta, quando seu brilho é forte, ainda é “muito bom para um negro”. Hoje ainda querem despir a pessoa de sua negritude, como fizeram com Alexandre Dumas e Machado de Assis. Aliás, já viram o rosto de Machado? Sabiam que nosso maior escritor, obrigatório em qualquer análise literária e histórica do Brasil era… negro? Muita gente não sabe. Já teve até comercial em que ator branco interpretou Machado. Ilustrações em que sua pele é rosada. Duro de engolir que nosso grande patrono das letras, intelectual fundador da Academia Brasileira de Letras era negro, enquanto seu filho loiro preguiçoso está há 7 anos no cursinho dizendo que é muita pressão ter que se encontrar, determinar o que será para o resto da vida. Ainda há revistas que clareiam a pele dos artistas. De manhã, antes de sair, muitos de nós pensamos em alisar o cabelo, afinar o nariz. Quem sabe assim seria mais simples?
Não seria.
Quando não nos matam, matam o sentimento de orgulho e solidariedade entre os nossos. Muitos negros não veem seu mundo particular como consequência de ações amplas que datam do Brasil colônia. Estamos perdendo aquela luta interna.
Mas… nós podemos vencer. As histórias auxiliam nisso. Músicas também. As artes em geral têm essa capacidade. E, se você não é um artista, compartilhe, empreste, presenteie alguém com artes que trazem aquela sensação boa, aquele sorriso no espelho. Há todo tipo de arte. Escolha a que te representa, que conta sua vida, que será parte da base de um futuro melhor. Mesmo com o ódio desprezando a arte, ela nunca morreu. Sofreu, sim. Foi criminalizada, censurada, presa, torturada. Mas jamais morreu.
Como jamais morrerá o sorriso no seu espelho.
Tenha um ótimo dia.
Rafael Calça
roteirista e ilustrador
Escrevendo, Calça já publicou os livros “Jockey” (2015), “Crônicas da Terra da Garoa” (2016) e a graphic MSP “Jeremias: Pele” (2018) com Jefferson Costa.
Ilustrando, já fez storyboards para publicidade e colaborou com editoras como Abril, ática, Globo, Leya e Moderna, e para diversas revistas e livros.