Nos idos dos anos 70, JORGE BEN lançou um disco sob este título. Negro é Lindo. O álbum vinha na esteira de uma nova explosão da Cultura Negra no Brasil, que se erguia, qual farol, a partir de um movimento de bailes nos grandes centros urbanos do país. Reuniões públicas (e por isso políticas) que expuseram artistas de grande envergadura – TIM MAIA, BLACK RIO, RAINHA QUELÉ, CASSIANO, DI MELLO, entre outros – numa cultura que construía sua cena à revelia do circuito oficial de rádio e TV, como estratégia para firmar-se e romper barreiras de invisibilidade que estavam colocadas sobre os valores, a cultura, a beleza e o modo de viver e ser dos muitos filhos brasileiros da diáspora africana.
Ainda hoje essa tentativa de invisibilidade persiste. Corra a timeline da sua rede social preferida ou o caderno de cultura dos jornais e se pergunte quanto da produção cultural negra de seu tempo você conhece ou vê exposta? Quantos e quantas artistas? Faça a mesma pergunta pensando na produção de brancos contemporâneos e repare a proporcionalidade com que essas pautas aparecem nos mesmos lugares. Salvo engano, a comparação entre suas respostas será muito desproporcional.
Não me reconheço como um artista negro embora uma parte importante das minhas referências culturais e filosóficas passem por aí. Da mesma forma, não me entendo como um criador branco e penso que meu trabalho não fale desde lugares da branquitude. Sempre me entendi como tributário de certas tradições culturais afro-nordestinas, para usar o termo de um amigo próximo, e portanto como um dos filhos da diáspora africana. É desse lugar que penso e compartilho agora esse texto, refletindo sobre os lugares de ocultação a que essa cultura está sujeita. Creio que combater e desconstruir essa e outras invisibilidades é responsabilidade nossa, em especial neste momento que vivemos.
Nesse sentido e olhando pra uma produção cultural mais ampla, pensei, à guisa de contribuição neste ciclo de lutas, numa pequena lista de artistas negros e negras, de diversas linguagens, cujo trabalho acompanho, admiro e me referencio. Todos em atividade e pertencentes mais ou menos à minha geração (entendo esse conceito com certa fluidez, incluindo faixas etárias um tanto distintas mas pertencentes ao que penso ser uma mesma maré temporal de criação). Trabalhos que me parecem absolutamente radicais e necessários, em termos da sua importância política e de sua relevância estética. Artistas cuja obra, como naquele movimento de bailes dos anos 70, se ergue como baluarte para pensarmos as linguagens em sua verdade interna e a política em sua importância coletiva. Arte e pensamento como trabalho e como luta, de pares que estão criando no calor da nossa hora.

Começo por onde me bate o peito: os quadrinhos! Ainda que soe óbvio, é impossível não falar de MARCELO D’SALETE, na minha opinião o maior autor desta geração. “Angola Janga”, seu último trabalho, é uma obra sem precedentes nos quadrinhos e, ouso dizer, dificilmente igualável na arte de nosso momento. Hoje ele colhe os merecidos resultados de uma obra que já está madura há vários anos, como “Noiteluz” – seu primeiro livro –, uma coletânea de histórias curtas, já bem mostrava.
JEFFERSON COSTA é outro dos grandes desenhistas em atividade. Seu traço, com ecos de Flávio Colin, tangencia o cordel e o Expressionismo Alemão. Vale cada página. “La Dansarina” é belíssimo e estou muito ansioso para ter em mãos o “Arcane Sally e Mr. Steam”.
Com a beleza da poesia de Carolina de Jesus, SIRLENE BARBOSA e JOÃO PINHEIRO são uma dupla que merece muita atenção. “Carolina”, biografia em quadrinhos da grande escritora, é um trabalho bastante sólido, com um texto impecável, limpo e um desenho rebelde e inteligente. Acompanho o trabalho de ambos e espero com grande expectativa os próximos livros.
Por fim, cumpre lembrar o nome de TAINAN ROCHA. Dono de um traço livre e violento, Tainan é sempre inspirado em suas ilustrações. Seus personagens têm a mesma fluidez do pincel e a contundência de um pote de nanquim explodido. “Que Deus te abandone”, feito em parceria com André Diniz é uma bela porta de entrada pro seu trabalho.

Nas artes visuais, o pintor e escultor SIDNEY AMARAL, infelizmente já falecido, é um nome incontornável e que muito me toca. Sidney fez um trabalho urgente, sempre alimentado pelas lutas do povo negro e pelas ambiguidades cruéis da sociedade oligárquica brasileira. Sua morte prematura não impediu que seu nome ficasse firmado entre os maiores de nosso tempo. É possível ver suas obras na Pinacoteca do Estado de São Paulo, no Museu AfroBrasil e na Galeria Pilar.
ANDRÉ RICARDO, pintor paulista, tem sido um alento na linguagem nos últimos anos. Corra pra ver seu trabalho em qualquer oportunidade. André fala de pintura, de paisagem, dos dilemas da cidade, sempre pensando as questões de sua linguagem como o suporte.
PRISCILA RESENDE é uma das minhas performers preferidas. Mulher negra e combativa, faz do seu corpo e da sua história o suporte para as reflexões do trabalho. A sua performance “Bombril” é uma das coisas mais impactantes que já vi a respeito do racismo estrutural do país.
ROSANA PAULINO é uma multiartista cuja obra se debruça sobre o combate necessário ao racismo e ao machismo. Sua instalação “Ama de Leite” é um registro visual bastante intenso a respeito da mercantilização e apropriação dos corpos negros em nossa sociedade.

No teatro, há uma produção bastante intensa relacionada às lutas e ao protagonismo negro.
Cito aqui os nomes do COLETIVO NEGRO, sempre necessário e contundente e o da CIA OS CRESPOS, cujos trabalhos valem a busca. Esses grupos colocaram na rua algumas das coisas mais poderosas que vi nos últimos anos em matéria de teatro. São deles, respectivamente, “Farinha com açucar ou Sobre a sustança de meninos e homens” (peça tributo aos RACIONAIS MCS que discute de forma importante e não hegemônica a masculinidade negra) e “Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas”.
GRACE PASSÔ, dramaturga, atriz e diretora, é um foco permanente de resistência, combate e inspiração. “Vaga carne” me atropelou. Um monólogo violento e poderoso sobre as construções sociais e históricas do corpo e da cor.
O coletivo paulista LEGÍTIMA DEFESA, que reúne diversos artistas negros e negras foi uma grata descoberta dos últimos anos. Seu trabalho pensa a linguagem de teatro de uma forma bastante provocativa, misto de cena, performance e manifesto, com intervenções audiovisuais, de um jeito contemporâneo e inquieto. A peça “A missão em fragmentos: 12 cenas de descolonização em legítima defesa”, seu primeiro trabalho como coletivo (os artistas integrantes possuem longa carreira em muitas linguagens) é uma porrada-manifesto poderosíssima.

A música é minha religião. Minha ligação com essa arte passa da mera influência ou inspiração e toca lugares quase transcendentes. Pra falar pouco, vou me ater a dois nomes, descobertas igualmente recentes para mim. BAIANA SYSTEM é, na minha opinião, o maior acontecimento da música brasileira recente. A maneira como eles fazem música, misturando a simplicidade das letras de um JORGE BEN com a sofisticação urbana e moderna do Rap, do eletrônico e do Rock, com toadas de NAÇÃO ZUMBI e guitarra baiana, faz com que eles sejam uma expressão da potência maior de nossa música.
A música nacional tem uma longa história de grandes mulheres intérpretes e compositoras. ELLEN OLÉRIA deve ser colocada entre estes nomes. Com um pé no Funk, outro no Jazz e o peito no Soul, me arrebatou de primeira num pocket show com meia dúzia de músicas que vi há uns 2 anos. “Afrofuturista” é um disco para se ter e ouvir sempre.

A literatura é, da forma como penso hoje, a arte que mais se relaciona com as questões primeiras dos quadrinhos: a construção do tempo em histórias. Nesse campo, penso que a relação entre sintaxe da linguagem e vontade do artista é mais evidente no resultado que nos quadrinhos e, por isso, mais complexa. SACOLINHA é um dos autores recentes que me instiga. Sua escrita suja, marginal por vocação, nascimento e escolha é uma pedrada na caretice acadêmica. “85 letras e um disparo”, seu primeiro livro, é um dos meus preferidos na estante.
Acabei de descobrir o RICARDO TERTO, e mergulhei em um tanto das coisas dele na internet. Não sei se o que ele faz é poesia ou prosa, mas ainda estou pensando no eco de seus contos/poemas. Coisa de gente muito grande.

Pra quem chegou até o final da lista, espero que as (muitas) palavras possam servir como qualquer inspiração e motivo para busca nesses muitos artistas negros e negras, poderosos em suas linguagens, e de tantos outros que não cabem aqui. Suas obras me abrem portas e campos que cumpre dividir. São Faróis. Como Jorge Ben. São lindos porque Negro é lindo. Negro é luta.

 

Alcimar Frazão
Piauiense de espírito radicado em São Paulo, Alcimar é artista, quadrinhista, ex-vocalista de uma banda de Death Metal, leitor inveterado, game-maníaco e coordenador de programação no SESC Pompeia. Lançou, entre outras coisas, “Me & Devil” e “Cadafalso”, pela editora Mino. Enquanto não encontra a chave da algema que o mantém preso à prancheta, vai fazendo economias pra comprar um Opala 77, preto, que vai encher de coisas divertidas e amuletos. Depois, é abandonar os dias de 36 horas e cruzar a América-latina caçando coisas estranhas. Talvez ele leve um caderno de desenho.