Parte V

A descompressão nos quadrinhos passou a ficar mais famosinha quando autores como Frank Miller começaram a usar uma “narrativa mais cinematográfica”… Cenas que antes cabiam em um quadro começaram a ser descomprimidas (esticadas) para 3 ou 4 quadros.

Uma cena com um personagem saltando na descompressão, por exemplo:
Quadro um: o personagem começa o salto.
Quadro dois: continua o salto.
Quadro três: continua o salto.
Quadro quatro: pousa.

Na compressão, este mesmo movimento mostrado em cinco quadros seria graficamente representado em apenas uma imagem, em um só quadro. Provavelmente, o personagem seria mostrado já caindo no chão, pousando, e o artista usaria as linhas de movimento (ou linhas cinéticas) para criar a sensação gráfica do salto todo do personagem, de todo o movimento.

O leitor imaginaria todo o movimento anterior do personagem. A linha cinética, por exemplo, é uma ferramenta gráfica criada nos quadrinhos e é um dos elementos de design mais interessantes desta mídia, e neste caso ela seria mostrada. A linha cinética é um dos elementos gráficos de quadrinhos que têm desaparecido junto com tal descompressão.

É interessante lembrar que a descompressão no trabalho de Frank Miller não veio exclusivamente de suas influências cinematográficas, mas de um estudo direto dos quadrinhos japoneses. Os quadrinhos japoneses já vinham trabalhando a descompressão desde muito tempo, acho que muito pela própria ligação entre mídias que existe naquela cultura (a tríade Mangá/Anime/Game).

É claro que o Anime é cinema, assim como o game também tem uma base forte de linguagem cinematográfica, então, talvez em última análise, Miller era influenciado por uma linguagem cinematográfica já absorvida pelo Mangá na forma da descompressão. É claro que Frank Miller conhece a linguagem do cinema, só estou dizendo que acho que sua maior influência foi esta linguagem cinematográfica já assimilada pelos quadrinhos, e não uma referência direta do cinema.

Com a descompressão nos quadrinhos, estéticas visuais ligadas ao cinema como traveling, planos de sequência, zoom in, zoom out e tantos outros movimentos, passaram a justificar, para a maioria das pessoas, o argumento de que quadrinhos é legal porque é uma linguagem cinematográfica.

Na época das HQs ainda comprimidas, falava-se desta ligação usando as composições de cena: os planos, como o aberto (ou geral), americano, médio, fechado, close, e por aí vai. Era muito mais uma questão de enquadramento do que de “movimento” ou ritmo. Antes, nos quadrinhos comprimidos, o movimento era ainda mais um ponto de interação entre o autor e o leitor, porque o leitor “completava” todas as cenas “faltantes”, e existiam muito mais linguagens gráficas para criar as ilusões destes movimentos, como as linhas cinéticas, por exemplo.

Ainda assim, mesmo com toda a definição de movimento dos quadrinhos descomprimidos, ainda temos o conceito de cenas não finalizadas, cenas intermediárias entre uma pequena ação e outra, que ainda devem ser completadas pelo leitor. Isto é, você não vê todo o movimento como no cinema, você vê momentos congelados deste movimento, e, assim, conceitos da linguagem dos quadrinhos conseguem se manter. O próprio controle dos formatos diferenciados de quadro, sua disposição na página e o controle de sua sequencialidade ainda são aspectos específicos de narrativa visual dos quadrinhos.

A compressão nos quadrinhos dava também ao texto um caráter descritivo… de narrador em alguns momentos, fazendo o papel de explicar a história e de compor, junto com a imagem, o contexto dessa história. A estética dos textos nas HQs nesse período era muito interessante, porque muitas vezes ele redundante em relação à imagem, descrevendo o que a imagem já mostrava, mas também trabalhava um TEMPO diferente em uma cena, já que tinha o caráter explicativo não só nos recordatórios, mas também dentros dos balões… por isso você via o personagem Thor, por exemplo, explicando ao vilão como ele venceria o vilão enquanto arremessava seu martelo… e o inimigo explicava ao Thor como ele estava enganado ao pensar assim… e também explicava porque Thor estava enganado.

Esse tipo de TEMPO, existia apenas nos quadrinhos… ele era uma “estilização” de tempo.. um tipo de metáfora de tempo. É um recurso apenas das HQs, que exige um tipo de entendimento, de visão menos pragmática do leitor. E isso eu achava uma das coisas mais legais nos quadrinhos.

A descompressão nos quadrinhos, é claro, não ficou concentrada apenas em tentar reproduzir movimentos de personagens ou câmeras de maneira “cinematográfica”, ela se alastrou na maneira como as histórias são escritas, como são pensadas. Histórias que antes eram contadas em 22 páginas, passaram a precisar de 3, 4 edições.

A descompressão não é uma alteração maléfica dentro da linguagem dos quadrinhos. Ela compõe a linguagem, ela acrescenta. O problema é quando ela se torna uma espécie de instrumento para justificar que os quadrinhos são bacanas porque são uma linguagem cinematográfica, ou ainda argumentar que são mais ou menos adultos, como mídia, quando usam, ou não, símbolos e signos de linguagem próprios e únicos de uma HQ.

A influência das HQs, como narrativa, e também em termos de elementos estéticos, enriqueceu muitos gêneros… Não só os super-heróis, mas também o western, piratas, guerra, fantasia espacial, capa & espada e tudo mais. O conjunto de ferramentas gráficas que os quadrinhos apresentaram compõe uma série de estruturas de linguagem e design muito interessantes e que foram amplamente usados em adaptações mais antigas em todos estes gêneros.

Este conjunto de ferramentas foi usado por diretores de cinema como estrutura de linguagem até para ajudar a definirem melhor certos padrões em cada um destes gêneros, conferindo a eles estilos próprios de imagem, composição de cena e narrativas próprias dentro de cada gênero… Uma estética específica do gênero em termos de linguagem. Isto é, esta estrutura de linguagem criava estilos diferentes para cada tipo de filme: Western tem um tipo de narrativa e composição de cena diferente dos filmes de pirata, que é diferente dos filmes de guerra, e por aí vai.

É obvio que estas estruturas não surgiram unicamente por influência dos quadrinhos… o que estou dizendo é que o que os diretores viam nos quadrinhos era também um fonte de inspiração para eles. A consciência do público sobre estas influências de linguagem dos quadrinhos no cinema se perdeu com o tempo à medida que esta narrativa foi sendo absorvida pelas pessoas. Isso é normal… com o passar do tempo, certas estruturas de linguagem passam a fazer parte de uma normalidade e não sabemos mais quais são suas influências diretas.

O importante é saber separar as coisas, e entender melhor o que se quer dizer quando se fala em transpor a linguagem dos quadrinhos para o cinema… Não estou falando de transpor apenas os conceitos de universos e personagens, estou falando de transpor linguagem. Às vezes sinto que a argumentação dos leitores de quadrinhos, em termos de definir o que é realismo em quadrinhos e o que é quadrinho cinematográfico, acaba sendo um pouco equivocada.


Fim da parte V

Leia também: Parte I, Parte II, Parte III, Parte IV, Parte VI (final)