Parte I

Já há algum tempo, tenho observado algumas mudanças em termos da utilização das ferramentas narrativas típicas da linguagem dos quadrinhos, e também em algumas alterações de tratamento conceitual de seus personagens… São conjecturas nerdísticas até certo ponto… mas fiquei pensando em como as adaptações cinematográficas podem interferir na linguagem dos quadrinhos e na maneira como o gênero dos super-heróis nos quadrinhos, por exemplo, foi afetado por estas adaptações.

Minhas opiniões, é claro, não representam a verdade, mesmo assim queria expor algumas destas ideias. Fica calmo, que sou meio confuso e pode demorar pra você entender aonde quero chegar…

Vamos lá…

Quando falamos destas adaptações cinematográficas, incluímos também as críticas e cobranças a respeito da fidelidade aos materiais originais. A princípio, adaptações deveriam ser apenas transposições de um mesmo gênero, conceito, espírito, estética, mitologia, de uma mídia para outra. É obvio que as HQs têm suas ferramentas e sistemas de métrica, de vocabulário de narrativa, sua estética particular para contar histórias, assim como o cinema tem as suas. E nas adaptações cada mídia usa seus próprios sistemas para transpor estas mesmas histórias, mantendo seus gêneros e conceitos. Também sabemos que a linguagem do cinema influenciou a dos quadrinhos, e vice-versa.

Há alguns anos, adaptações de Histórias em Quadrinhos para o cinema, principalmente no gênero super-herói, eram vítimas de uma só preocupação e talvez dificuldade: os roteiros deveriam ter certos limites de extrapolação da fantasia. Não existia ainda a tecnologia necessária para transpor com “realismo” para a telona os cenários fantasiosos, os superpoderes e as façanhas de heróis e super-heróis, o impacto visual de toda aquelas batalhas grandiosas que vemos nos gêneros explorados nesta literatura de imagem. Hoje em dia, isso não é mais problema… Você consegue fazer tudo, depende apenas do tamanho do seu bolso. Homem-Aranha, Homem-de-Ferro, Batman, Superman…

Diretores que cresceram influenciados por obras de quadrinhos aprenderam a usar esta tecnologia e, conquistando resultados financeiros de lucros absurdos, principalmente para os grandes estúdios, fizeram Hollywood ajoelhar-se perante um dos gêneros mais dinâmicos das HQs.

A maioria destes diretores teve como diretriz principal trazer os super-heróis para o mundo real… E, para torná-los verossímeis, alguns elementos gráficos e estéticos de narrativa típicos dos quadrinhos foram, aos poucos, postos de lado.

Realismo. Esta é a palavra-chave de todo o pensamento que estou tentando expor.

Um dos obstáculos gráficos mais engraçados existentes no gênero super-heróis que deve ser “eliminado” para se atingir esse “realismo” são os uniformes originais. Nos quadrinhos, conseguimos aceitar um Wolverine baixinho e peludo, com sua roupa colante amarela e azul, e sua máscara estilo Batman, mas achamos que ela nunca ficará realista vestindo um ator adulto.

Se este elemento gráfico for respeitado, o público geral não conseguiria levar tudo aquilo a sério. Assim, o realismo dita as regras para se adaptar a uma estética… seja ela narrativa ou gráfica. Quando idealizaram esses uniformes, os desenhistas estavam interessados em seu efeito gráfico e não em como ele ficaria vestindo um cara de verdade. A linguagem dos quadrinhos é essencialmente gráfica. Assim, estes uniformes são como logotipos.

O uniforme não é o único elemento estético do gênero super-herói alterado em suas adaptações para se atingir esta intenção de verossimilhança junto ao público geral. E não estou falando em coisas “óbvias”, adaptar a linguagem de quadrinhos para cinema é muito mais do que usar crashs, booms ou recordatórios com o texto “enquanto isso…” nas telas de cinema ou TV.

Alguns poucos diretores tentaram transpor as ferramentas narrativas e os elementos gráficos típicos dos quadrinhos para a telona na tentativa de adaptar não só personagens, mas a linguagem das HQs de uma mídia para a outra. Desde a famosa série de TV de Batman na década de 1960 (os planos e composições de cena típicos do que víamos nas revistas do Batman da época; os tipos de cortes de cena; as perspectivas distorcidas quando os vilões apareciam), passando por Dick Tracy – 1990 – (também com os planos e composições de cena vistos nos quadrinhos; a maquiagem pesada tentando reproduzir o estilo gráfico do desenhista Chester Gold; a direção de arte dos cenários simples e limpos; as cores chapadas e sua cartela básicas de tons – imitando a pequena diversidade de cores acessíveis aos meios gráficos da época em que as tiras de Dick Tracy foram publicadas); Sin City (acusado por alguns de ser uma transposição literal demais, mas que trabalha muito bem cada composição de cena e o controle de cortes de cena em termos da sequencialidade típica dos quadrinhos).

O filme Hulk, de Ang Lee, odiado pela maioria do público tenta trabalhar com alterações de formato de quadros dentro do espaço físico fixo de uma tela de cinema, tentando reproduzir a importância narrativa em termos de ritmo que os formatos de quadros e requadro diferentes conferem à linguagem nas histórias em quadrinhos, e também em termos de composição, clima, cortes e intenção de cena; o estabelecimento de quadros de inserção com narrativas paralelas e simultâneas; entre muitas outras reproduções de linguagem.

As ferramentas de narrativa e a estética gráfica das Histórias em Quadrinhos são os principais elementos que diferenciam esta de outras mídias. Sabemos que alguns diretores conceituados, menos envergonhados em admitir a troca de figurinhas entre quadrinhos e cinema (como Akira Kurosawa, Federico Fellini e Orson Wells, por exemplo), usaram em seus filmes as melhores ferramentas de estética e narrativa encontradas em uma boa História em Quadrinhos. O importante é saber separar as coisas e entender melhor o que se quer dizer quando se fala em transpor a linguagem dos quadrinhos para o cinema… Não estou falando de transpor apenas os conceitos de universos e personagens, estou falando de transpor linguagem.


Fim da parte I

Leia também: Parte II, Parte III, Parte IV, Parte V, Parte VI (final)