Construindo conceitos de leitura do desenho
Quando se é criança, nosso mundo ainda está em construção. Nossas noções do que seja a realidade ainda estão sendo apuradas, construídas à medida que essa realidade nos é apresentada. À medida que tomamos contato com ela, com que convivemos com ela. Á medida que ela nos apresenta seus limites e possibilidades… E alguns consideram essas possibilidades bastante limitadas. Aos poucos, as crianças vão aprendendo a reconhecerem formas.
Cada uma destas formas começa a se tornar um pouco mais complexa, assumindo uma idéia, um nome que as ajuda a identificar rápido um conceito, um sentido, uma utilidade daquela forma. Se elas tiverem contato com outras possibilidades de formas, como as apresentadas nos desenhos animados, elas aprendem a abstrair, aprendem a entender que as formas podem ser “desenhadas” de maneiras diferentes… Uma na realidade e outra como uma representação gráfica desta realidade em desenho.
Meus filhos aceitavam as situações apresentadas nos desenhos animados simplesmente pelas emoções que elas sugeriam. Eles não julgavam se aquelas formas ou situações existiam na realidade ou não… Por exemplo, não deixavam de ver que aquilo era uma mão, só porque era o desenho hiper-realista de uma mão. Mesmo sendo uma mão que ao invés de ter cinco dedos, tinha apenas dois ou três…
Mesmo sendo gordinha ou magrinha de mais… Arredondada ou angulosa demais. Mesmo sendo a mão de rato, de um pato, de um coelho, de um pica-pau. A mão não deixava de ser mão, só porque não era representada graficamente como uma mão exatamente como a vista no mundo real. Eles tinham a capacidade de abstrair a forma… As crianças se comunicam com os sentimentos apresentados sem colocar nenhum obstáculo. As crianças se comunicam através de sentimentos, de conceitos, de ideias.
Não prejulgavam pelas imagens “não realistas”. E se elas podem, porque os adultos não? Não podemos porque crescemos?
Porque aprendemos a tornar as coisas mais complexas?
Desenhar é, também, manter a noção de abstração, vendo as formas como símbolos gráficos… Um cachimbo desenhado não é um cachimbo, é a representação gráfica de um cachimbo (citando Magritte com seu “isto não é um cachimbo”). Uma mão desenhada não é uma mão…
Ela é a representação gráfica de uma mão.
No desenho, na expressão artística, não existe a necessidade absoluta de entender mão, como a que vemos na realidade, no real… Podemos LER formas gráficas de mão, de pé, de perna, nariz, boca, olhos, braço, e de objetos como cadeira, mesa, televisão, carros, avião, e tudo mais que existe no mundo material.
Pensando assim, o desenhista passa a apresentar sua maneira pessoal de ver um rosto, uma mão, um nariz e por aí vai. Ele esta interpretando o real, criando seu próprio universo gráfico, criando seu alfabeto… Trabalhando assim, o artista não está apenas reproduzindo formas, está se expressando. A letra “A” pode ser escrita, ou “desenhada” de infinitas formas diferentes, já que existem muitas pessoas no planeta e cada uma delas pode fazer seu próprio “A”. Hieróglifos, ideogramas seguem este pensamento.
Eles não são desenhos realistas… Eles representam idéias, conceitos. Desenhar é isso. Desenhar é conceito, é escrever palavras. Um olho é uma letra, um nariz é outra, uma boca outra, outro olho outra… Quando você juntar todas estas letras, terá a palavra rosto.
Pensar no desenho como forma de expressão cria um conceito mais subjetivo da forma. Ela tem um caráter simbólico, metafórico. Esse aspecto enriquece muito a imagem, ela toma outra proporção. O desenho realista ou hiper-realista é uma conquista técnica válida e importante… Mas não podemos nos esquecer de um tipo de valor mais profundo do sentido gráfico.
Se uma pessoa consegue fazer com que outra entenda que ela “escreveu” a palavra rosto, então, ela se comunicou. Isso é desenhar.
Fim da parte III
Leia também a parte I, parte II, parte IV e a parte V (final)