Lembro-me muito bem quando passei em uma banca de revistas na avenida Paulista e comprei um gibi do Demolidor. A princípio, a capa me chamou a atenção. Era o John Romita Jr. desenhando, um dos meus desenhistas favoritos. A edição, 250. Peguei um ônibus de volta para o apartamento onde morava em São Paulo e li a história. Nada tinha me preparado para ler um gibi desenhado pelo Romita Jr, aquele cara que eu admirava tanto, o resultado foi que nem consegui prestar atenção ao desenho… o que capturou minha total atenção foi o roteiro de Ann Nocenti.
Quando eu acabei de ler, tudo o que eu pensava era “eu quero escrever como essa garota”! Não era só a história em si, o enredo, que era sensacional e muito bem estruturado. Também não era apenas a maneira como ela compunha os personagens, como ela os apresentava ou elaborava as personalidades. Ou mesmo a maneira incrível como ela havia criado alguns dos personagens daquela edição. Era também a estética de escrita. A maneira como ela construía as frases, fosse nos balões de fala ou nos recordatórios de narração. Ann Nocenti me conquistou ali. Me apaixonei por ela, pelo trabalho dela. Sinceramente não me lembro de algum roteiro ter me feito pensar daquele jeito antes. Eu realmente queria escrever como ela.
A partir dali, comecei a correr atrás de toda e qualquer revista que ela tivesse escrito. Demolidor se tornou meu gibi favorito com ela, e não com Frank Miller (tô sendo sincero!). Durante sua estada no título ela criou uma nova galeria de vilões, incluindo Typhoid Mary, Bullet e uma personagem incrível chamada Number Nine. Além disso, ela coloca o Demolidor se defrontando com Blackhart, filho de Mephisto.
Nocenti também criou um dos melhores personagens da história recente da Marvel (recente pra mim, pelo menos…), o Longshot, em parceria com o desenhista Arthur Adams. Um personagem que apresenta todo um novo tipo de universo Marvel, com seu vilão Mojo e personagens como Spiral, Ricochet Rita e Quark. Um dos universos mais criativos apresentados pela editora em anos. Nesse período, ela também escreveu um arco de histórias com o personagem Colossus, um dos mutantes do grupo X-Men. A história “Colossus: God’s Country” é, para mim, um de seus melhores trabalhos! Esse material é de uma simplicidade tão grande e a maneira como ela constrói o arco e os conflitos dos personagens que ela apresenta, são tão bem construídos que assusta um pouco quem quer escrever um roteiro competente de super-heróis. “Inhumans: By Right of Birth” é outro trabalho dela que eu curto muito também.
Ela também escreveu títulos como Dr. Strange, Hulk, The Defenders, Star Wars para a Marvel, além de muitos outros. Para a DC, escreveu Green Arrow, Catwoman, Justice League Dark, Katana, Kid Eternity, entre outros. Foi editora durante muito tempo, mas não é isso. Não é a quantidade de coisas que ela escreveu. É como ela escreveu. Existe alguma métrica, alguma estrutura existencialista em como ela escreve, em como ela desenvolve os conflitos dos personagens e vai cavando a personalidade de cada um deles, sem desrespeitar o que já foi feito antes. Sem partir do zero. Sem recriar ou reinterpretar os personagens.
Ela encontra os pontos certos para apertar nos traumas, facetas ou máscaras de cada personagem. Os botões certos pra explorar o que cada personagem é. Ela sempre explora temas interessantes do que é ser humano e de como pensamos… Em certo ponto, ela me lembra David Lynch em obras como “Twin Peaks” e “Estrada Perdida”. E em alguns, me lembra Terry Gillian em filmes como “Brazil”, “12 Macacos” ou “Tideland”. Mas ela não é nada disso e tem um jeito só dela de escrever. Nunca tinha visto alguém tratar os roteiros de super-heróis dessa maneira.
Não vi mais muitos trabalhos dela como roteirista, mas sempre releio esses materiais do Demolidor, do Longshot e do Colossus, principalmente. E sempre fico lá pensando… “queria muito escrever como a Ann Nocenti”…
Dica de: Marcelo Campos